Alvo de críticas contundentes de policiais federais e militares, a PEC da Segurança Pública, proposta do governo federal para integrar políticas locais de combate ao crime e reestruturar carreiras do setor, ganhou a adesão dos governadores após um acordo costurado pelo Conselho Nacional de Secretários de Segurança Pública (Consesp). A versão original do texto foi alterada para prever expressamente que os Estados têm autonomia para implementar ações de segurança e que Brasília terá o papel de coordenação nacional.
Ao Estadão, o secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, o delegado federal Sandro Avelar, atual presidente do Consesp, afirma que a adesão demonstra que a proposta apresentada pelos secretários e encampada pelo governo tem “consistência”. Apenas o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), se opõe à nova versão do texto.
A PEC é a proposta mais ambiciosa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para uma área sensível, marcada pelo caos em todo o País.
Além da preocupação dos governadores com possíveis interferências do governo federal nos Estados, profissionais de Segurança Pública atacaram o texto por considerar que a proposta não terá resultados práticos. Entidades de classe divulgaram manifestos bombardeando a PEC.
Para Avelar, as alterações promovidas pelo governo são um “reconhecimento” de que havia necessidade de retificações e de solucionar “conflitos”.
A PEC ainda não foi enviada ao Congresso e tende a ser modificada durante os debates legislativos. Na avaliação do delegado, as principais contribuições do texto são a integração dos bancos de dados das polícias estaduais e a constitucionalização do Fundo da Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional. Segundo Avelar, esses são pontos que não deveriam ser alterados durante a tramitação da proposta.
Após ajudarem a costurar o acordo, os secretários de Segurança Pública dos Estados pressionam o governo por uma reforma do Conselho Nacional de Segurança. O órgão colegiado tem a atribuição de formular e propor diretrizes para as políticas de segurança, com foco na prevenção e repressão à violência e à criminalidade.
O conselho é formado por representantes do governo federal, do sistema de Justiça, dos órgãos de Segurança Pública e da sociedade civil. Pesquisadores renomados também têm assento no órgão. A composição foi pensada para reunir profissionais com diferentes trajetórias e, com isso, contemplar pontos de vista variados.
O lobby dos secretários é para reduzir a participação de representantes da sociedade civil. Avelar defende que profissionais de segurança devem “prevalecer” no conselho.
“Há profissionais que dedicam a vida inteira a se especializar nessa matéria e, na hora de ditar as diretrizes básicas, esses profissionais são preteridos por aqueles que não são oriundos da segurança pública e que, às vezes, têm um relacionamento muito distante com essa área. Um relacionamento às vezes muito idealista e muito distante do mundo real. E isso sim pode gerar um distanciamento das boas práticas que devem ser adotadas e que todos os secretários de segurança pública, independente de quem é de esquerda, de direita ou de centro, conhecem”, afirma.

Leia a entrevista completa de Sandro Avelar:
O texto da PEC da Segurança Pública ainda não foi enviado ao Congresso. Durante a tramitação, ele pode ser alterado. Quais são os pontos que, na avaliação do sr., são fundamentais e não deveriam ser modificados?
A busca pela integração dos bancos de dados para que as polícias possam ter informações oriundas de outros Estados é um ponto positivo. É inconcebível que, com tanta tecnologia que nós temos hoje, ainda exista a possibilidade de que um cidadão que comete um crime em um determinado local se mude e o novo local onde ele passa a residir não tenha informação da sua vida pregressa. Essa falha leva muitas vezes a uma questão muito controvertida, que é juízes liberando pessoas com um longo histórico criminal em audiências de custódia por não terem conhecimento de que aquela pessoa tem tantos antecedentes criminais. A integração dos bancos de dados é um ponto positivo. Também é positiva a constitucionalização dos Fundos da Segurança Pública e Penitenciário, mas é preciso definir as fontes de financiamento desses fundos.
O texto tem sofrido críticas duras de entidades de classe da Polícia Federal, da Polícia Militar e de outras carreiras da segurança pública. Um dos pontos que preocupa é a redefinição de atribuições de algumas categorias. O sr. concorda que as mudanças podem gerar uma sobreposição de atribuições?
A primeira versão apresentada pelo Ministério da Justiça trazia realmente uma dubiedade, trazia dúvidas sobre as atribuições da Polícia Rodoviária Federal, o que gerou uma preocupação das polícias judiciárias, que são a Polícia Federal e as Polícias Civis dos Estados. Mas, na segunda versão apresentada pelo Ministério da Justiça, o governo federal deixou claro que as atribuições da Polícia Rodoviária Federal vão ser expandidas. A PRF será reformulada para fiscalizar não apenas rodovias federais, mas também ferrovias e hidrovias. Contudo, ficou expresso que a Polícia Rodoviária Federal não terá atribuições de Polícia Judiciária. Isso foi um reconhecimento de que o primeiro texto estava gerando conflitos. E essa segunda versão veio a retificar isso, deixar claro que não haveria uma sobreposição das atribuições. E, no que diz respeito à Polícia Federal, a nova previsão constitucional não traz nada de novo, tão somente coloca na Constituição as atribuições que a Polícia Federal já tem. Por exemplo, combater os crimes contra o meio ambiente.
O que falta para um apoio unânime dos governadores?
A proposta alternativa apresentada pelo Consesp ao Ministério da Justiça foi aprovada pelos 27 secretários de Segurança Pública e por 26 governadores. Isso mostra que ela tem uma consistência grande. E, até por isso, o governo federal nos deu condições de participar do debate e implementou algumas das medidas que nós sugerimos, destacando inclusive que o governo federal fica numa posição de coordenador, mas que vai respeitar a autonomia dos Estados no que diz respeito às políticas de gestão dos órgãos da Segurança Pública. Isso nós defendemos com muita veemência e foi colocado no segundo texto apresentado pelo governo federal, de maneira expressa, respeitando o princípio do pacto federativo.
Recentemente, o STF reconheceu o poder de policiamento ostensivo e comunitário das Guardas Municipais. Considera que essa pode ser uma boa solução de segurança?
É preciso cautela para evitar conflitos de competência, sobretudo com as Polícias Militares dos Estados. Mas a decisão do Supremo faz essa ressalva, resguardando as atribuições da Polícia Militar. É preciso que isso seja respeitado para que as corporações não tenham choques de competência. Se as Guardas Municipais atuarem tão somente no casos previstos, que dão a elas a possibilidade de fazer policiamento comunitário, de fazer segurança orgânica dos órgãos municipais, é uma força que vem a integrar o sistema de segurança pública de todo o País, somando-se, assim, às forças estaduais e também federais.
Então, o sr. vê uma tendência de que as Guardas Municipais sejam, de fato, integradas nesse policiamento mais ostensivo?
Sim, eu vejo uma tendência, isso acontece em alguns municípios. Embora essa fase de transição tenha que ser vista com cautela para que não haja uma sobreposição de atribuições, eu acho que há como se fazer uma construção segura, com respeito às forças estaduais, sem nenhum tipo de intercorrência, sem nenhum tipo de sobreposição de atribuições entre as instituições que fazem segurança pública.
Ao julgar a ‘ADPF das Favelas’, o STF obrigou a União a criar uma força-tarefa de policiais federais para investigar facções e milícias em atuação no Rio de Janeiro. O sr. é a favor de ampliar a integração da Polícia Federal na investigação de grandes organizações criminosas?
Eu acho que essa aproximação das instituições federais com as instituições estaduais é sempre muito bem-vinda. Todas as corporações sentem falta de ter mais integrantes nos seus efetivos. Então essa soma de esforços e, sobretudo, a soma de informação e de inteligência, sempre vem para o bem da sociedade. Mas precisamos dar uma atenção muito especial para os crimes do dia a dia, os chamados crimes domésticos, que são aqueles que verdadeiramente trazem a sensação de insegurança para a população. E esses crimes são combatidos pelas policiais estaduais. São, sobretudo, os crimes patrimoniais, como roubos e furtos, além dos homicídios. A grande maioria desses criminosos tem uma extensa ficha criminal. São reincidentes que têm sido mantidos em liberdade por uma legislação absolutamente equivocada. Quem paga o preço é a população. E quem tem que dar a solução? É o sistema estadual, que envolve as polícias estaduais, a Polícia Militar e a Polícia Civil, além do Ministério Público e o Judiciário Estadual. Então, é preciso que haja realmente essa conscientização. Se ela não for alcançada através de uma mudança constitucional, que seja alcançada através das mudanças infraconstitucionais que têm que ser necessariamente realizadas com urgência. É enorme a quantidade de pessoas com uma larga ficha criminal que só são retiradas do convívio com a sociedade quando cometem um crime gravíssimo, como um homicídio ou um latrocínio.
Qual seria a solução? Quais são os critérios ou parâmetros que devem ser estabelecidos na legislação para evitar esse problema?
Precisamos de legislação que permita que os reincidentes sejam efetivamente presos. O reincidente não deveria poder colher os benefícios da audiência de custódia. Dados estatísticos mostram que quando você tira esse tipo cidadão de circulação há uma efetiva redução da criminalidade, sobretudo dos chamados dos crimes patrimoniais, especialmente os furtos e roubos.
Existe uma politização da Segurança Pública no Brasil?
Entre os 27 secretários de Segurança Pública do País não há divergências sobre as medidas que devem ser tomadas para combater a violência. Todos, independente de bandeira partidária e dos governos dos quais fazem parte, têm um alinhamento técnico e são conhecedores das medidas que precisam ser adotadas para a redução da criminalidade. Não se faz segurança pública com medidas de curto prazo. As medidas que causam bons resultados são aquelas que vão se estabilizando com o passar dos anos. São medidas técnicas e assim têm que ser tratadas. Por isso é preocupante que o governo federal estabeleça que as diretrizes básicas de segurança pública sejam traçadas pelo Conselho Nacional de Segurança. Esse conselho é majoritariamente composto por entidades que, essas sim, têm um condão político. São ONGs e entidades representativas da sociedade civil que muitas vezes não são diretamente relacionadas à segurança pública. Você acaba preterindo os profissionais da segurança pública que realmente conhecem do assunto. Há profissionais que dedicam a vida inteira a se especializar nessa matéria e, na hora de ditar as diretrizes básicas, esses profissionais são preteridos por aqueles que não são oriundos da segurança pública e que, às vezes, têm um relacionamento muito distante com essa área. Um relacionamento às vezes muito idealista e muito distante do mundo real. E isso sim pode gerar um distanciamento das boas práticas que devem ser adotadas e que todos os secretários de segurança pública, independente de quem é de esquerda, de direita ou de centro, conhecem. É preciso valorizar os profissionais da segurança pública. Se houver uma participação de ONGs na escolha das medidas que devem ser adotadas no plano nacional, que essas ONGS e representantes da sociedade civil sejam ouvidos, mas que os profissionais de segurança prevaleçam no que diz respeito à adoção de medidas relacionadas à segurança.
A solução seria pensar uma recomposição do conselho ou a criação de outro órgão?
É preciso modificar a atual composição do conselho para que haja representantes da sociedade civil, mas não em prejuízo de uma maioria significativa de profissionais de segurança que têm que ter a sua participação contemplada. Até porque nós temos áreas diferentes na segurança pública. É preciso contemplar representantes do governo federal, dos governos estaduais e das guardas municipais. Mesmo dentro dos governos estaduais, temos a Polícia Civil e a Polícia Militar, temos linhas de pensamento diferentes. Esses profissionais têm a atribuição de combater a criminalidade e, infelizmente, na atual composição do conselho, eles têm um espaço absolutamente dividido com aqueles que não têm o mesmo grau de conhecimento, até porque não são profissionais da área.
O sr. hesitou em aceitar assumir a Secretaria de Segurança do DF após o 8 de Janeiro?
Eu sabia que tinha a experiência necessária para assumir essa missão. Em toda a minha história profissional eu convivi com governos de linhas diferentes, convivi com governos de esquerda, com governos de direita, com governos de centro e, com todos eles, eu soube manter a institucionalidade. Eu não poderia me furtar de aceitar esse convite, que eu recebi como uma missão. Eu sabia que tinha qualificação, tinha bom relacionamento tanto no governo federal quanto no Judiciário, para que houvesse ali uma relação de confiança e eu pudesse funcionar como um fator agregador, como fator de integração entre esses poderes. E todos os dias eu tenho tentado executar essa política de respeito institucional à corporação que faz parte da segurança pública e respeitando as demais áreas, as mais diversas esferas de poder, seja no governo DF, no governo federal, nos demais poderes, como do Judiciário. Então, eu aceitei o convite assim como uma missão, sempre respeitando a institucionalidade.
É a favor da anistia para os réus do 8 de Janeiro?
Essa é uma questão que foge da minha alçada. Não é uma matéria sobre a qual eu me debruce na condição de secretário de Segurança Pública.