“Se aceitamos alunos menos preparados, devemos cuidar para que eles se formem profissionais competentes”
Roberto Lobo* 02 de julho de 2025
Não é fácil recuperar o tempo perdido. Tempo perdido, no nosso caso, pode representar pouco estudo no ensino fundamental, professores deficientes, família de nível cultural precário, necessidade de trabalho precoce, e podemos pensar muitos outros handicaps.
O que procuramos verificar neste artigo é a dificuldade do estudante de superar estes handicaps para se formar em condições de atuar competentemente na profissão escolhida – simplesmente falando, se o estudante que participa de uma prova que procura aferir sua competência profissional consegue, mesmo com deficiência de “entrada”, se colocar entre os melhores.
Sabemos que a educação é um sistema complexo, porque envolve a interação dinâmica entre múltiplos fatores — estudantes, professores, gestores, políticas públicas e tecnologias — em contextos diversos e de difícil previsão.
As interações são não lineares, coletivas e sociais, sendo os efeitos das ações educacionais variáveis conforme o ambiente e o momento. Além disso, o sistema educacional está em constante adaptação, respondendo a mudanças sociais, culturais e tecnológicas.
Soluções não surgem apenas de cima para baixo, mas também de forma espontânea e colaborativa, refletindo a auto-organização típica dos sistemas vivos e, também, da sociedade.
Por isso, políticas e práticas educacionais eficazes precisam considerar a complexidade, estimulando a flexibilidade, a escuta ativa e a construção coletiva do conhecimento. Estudos como estes podem ajudar a agregar informações importantes que contribuam para a visão abrangente da educação superior e sua melhoria.
Em educação devemos analisar várias relações, comparando insumos, motivações, metodologias e resultados obtidos, sempre atentos a outros fatores que possam resultar em respostas bastante diferentes para situações muito parecidas. Por isso, na educação não há bala de prata, nem medidas isoladas que resultem em ganhos rápidos e radicais.
Neste artigo buscamos olhar um aspecto da educação superior no Brasil, buscando entender um aspecto: as deficiências dos estudantes que ingressam em um curso tradicional e fundamental para o desenvolvimento do Brasil, no caso, a Engenharia Civil (representado pelas notas obtidas no ENEM), e seus reflexos nos resultados ao final do curso (representado pela nota do ENADE).
Embora sujeitos a muitas críticas, os exames do INEP ainda são uma medida mínima de competência para os profissionais recém-formados. O ENADE analisado foi o relativo ao ano 2019, antes da pandemia do COVID, que distorceu, muito provavelmente, os dados educacionais do período posterior.
A ideia é comparar os ingressantes nos diferentes cursos que realizaram as provas do ENEM (ao ingressar) e acompanhar seus resultados no ENADE (na conclusão do curso). São naturalmente exames diferentes, tanto na aplicação quanto no conteúdo.
A nota do ENEM poderia ser calculada como a média aritmética das 4 provas objetivas que fazem parte do exame. No entanto, essa não é a forma que o INEP utiliza para calcular a nota ENEM para os ingressantes no ensino superior.
O INEP considera uma combinação linear das 4 provas com 4 parâmetros a serem ajustados para fazer as notas ENEM mais próximas possível das notas ENADE.
Por exemplo, na Engenharia Civil, que estudamos aqui, se as quatro provas do ENEM tivessem o mesmo peso, cada uma teria um coeficiente de 0,25. Quando se adota a metodologia do INEP, os coeficientes passam a ser 0,27,0,30, 0,11 e 0,32, respectivamente, para as provas de Ciências da Natureza Ciências Humanas, Linguagem e e Matemática.
Não admira que o peso menor recaiu sobre linguagens e o maior em matemática. Há, portanto, uma correlação maior entre o sucesso do estudante de engenharia civil no ENADE para os que obtêm melhor resultado em matemática.
As notas do ENEM são então normalizadas, como faz o INEP para o ENADE, e, também, classificadas em ordem crescente de números inteiros, de 1 a 5.
Esta nota é tomada como um indicador do conhecimento do estudante ao ingressar no curso superior escolhido, relativamente aos temas do ensino médio.
Ao terminar o curso superior o estudante se submete ao exame do ENADE, feito pelo INEP, onde é tomada a nota bruta das provas objetivas, com pesos de 25% para formação geral e 75% para formação específica. Novamente as notas do ENADE são normalizadas e postas na forma de números inteiros que variam de 1 a 5, crescentes com o desempenho do aluno.
Cada aluno que se submeteu ao ENADE tem, desta forma, duas notas que podem variar, segundo números inteiros, de 1 a 5, em comparação com os demais estudantes.
Como todas as notas são relativas, os estudantes foram analisados em conjunto, porque o objetivo não é analisar sua proficiência profissional, mas estudar a dificuldade da mobilidade vertical, isto é, entrar em um curso a partir de um desempenho inferior no ENEM para atingir níveis superiores no ENADE.
Quantos alunos conseguem passar de um nível 1 no ENEM para um nível 4 ou 5 no ENADE?
Para podermos analisar os movimentos dos estudantes nas avaliações ENEM e ENADE, escolhemos um só curso, Engenharia Civil, com 38.364 participantes, baseados nos microdados ENADE 2019, para testar a metodologia e analisar as principais características da mobilidade interna dos estudantes. É claro que os resultados serão diferentes para cada curso.
Separamos também os estudantes em cursos presenciais e EaD, para observarmos as expectativas de transição de um mal início a um final bem-sucedido.
Estudantes que estraram menos preparados segundo os critérios adotados aqui, notas 1 e 2, tiveram grande dificuldade de obterem as melhores notas no ENADE, 4 e 5. Um pouco mais difícil ainda nos cursos oferecidos em EaD.
Não foi feito um estudo separado para estudantes de EaD neste curso porque, na Engenharia Civil em 2019 havia pouco mais de 400 estudantes em cursos EaD e não era uma amostra significativa. Foi possível verificar, entretanto, que estudantes de cursos EaD, mesmo poucos que eram, não apresentam grande diferença dos presenciais, embora a ascensão se mostre um pouco mais difícil. Saltos de um grau (3 para 4, 4 para 5, etc.) são os mais prováveis. Nenhum aluno EaD obteve nota 5 no ENADE.
O mais importante resultado é a confirmação da suspeita que temos, mas que não se encontra nas propagandas dos cursos, ou análises do MEC: em ambas as modalidades, nenhum estudante com notas 1, 2 ou 3 no ENEM conseguiu atingir nota 5 no ENADE.
A mobilidade entre faixas é bastante baixa, indicando que os cursos não favorecem a recuperação de estudantes com deficiências. Verifica-se que 80% dos estudantes que ingressaram com o equivalente a uma nota 1 no ENEM se concentraram nas faixas de nota 1 e 2 no ENADE. Nenhum atingiu notas 5. Da mesma forma, 40,7% dos estudantes que obtiveram nota 3 no ENEM, mantiveram esta nota no ENADE, 72,1% dos estudantes nota 5 no ENEM ficaram nas faixas 4 e 5 no ENADE.
A metodologia do INEP leva a uma atração para a média, mas é claro, pelos dados obtidos neste estudo que é fato raro que estudantes deem saltos expressivos entre o desempenho no ENEM, ingresso, e no ENADE, final do curso.
Como análises de dados só são realmente úteis se puderem orientar políticas públicas, este estudo remete à necessidade de estabelecer políticas educacionais que sejam capazes de ajudar os estudantes mais dedicados a vencerem a barreira inicial de sua inferioridade no ingresso ao curso superior frente aos outros ingressastes e colocá-los em condições de igualdade com os melhores.
Embora seja verdade que nem todos os estudantes com nota 1 no ENEM alcançarão os melhores resultados mesmo com apoio, é razoável supor que alguns poucos o fariam, se adequadamente assistidos. Entretanto, certamente, muitos melhorariam a qualidade de sua formação, mesmo não atingindo os resultados de excelência.
A pequena mobilidade dentro do curso de Engenharia Civil é, talvez, uma das razões que explicam os altos níveis de evasão nestes cursos – e consequentemente uma baixa taxa de titulação destes cursos no Brasil.
*Roberto Lobo é PhD em física pela Purdue University, foi reitor da USP e é presidente do Instituto Lobo